sábado, 28 de maio de 2011

Não sei por onde andas

Texto José António Cunha


Licas: (assim começaria o João Feijó). Brinjas(digo eu):

Não sei o que tenho nestes dias. O meu corpo dá sinais. Dentro de mim há muita inquietação. Parece que há qualquer coisa para acontecer. Tenho um prenúncio de dor que não quero acreditar. Uma coisa que me custa a perceber. Talvez seja até uma certeza de mágoa, que para não querer aceitar, invento uma forma imperfeita e hesitante de o dizer, a quem comigo nesta manhã, reparte um sol de Maio e uma triste notícia. Ninguém gosta de dias assim. Como diz o povo, a estocada da bruta nunca escolhe dias nem horas. Como tanto gostas de dizer nesse teu ímpar sangue limiano: fiquei assarapantado! Não sei se há maneira alguma de como ficar. Eu não conheço o sítio para onde foste, só sei que me dizem que saíste. Terás ido à Portugália, tomar cerveja, como de chuva interior precisasses? Desceste a Almirante Reis e passaste a noite no Bolero? Paraste na Ginginha da Barros Queiroz,dizendo a todos que Pessoa andou por aqui? Foste ao Passo, no Rossio, ouvir restos de África, falar de Ponte de Lima e da maçonaria? Vi que pegaste nos loucos de Lisboa e sentaste-os à mesa contigo, no requinte de um lugar da Rua do Coliseu. Com os do Parque Mayer, esperaste pelo amanhecer de Lisboa, junto à gare da praça do Rei-Soldado reconfortado que nem um tal Duque de Wellington. E como bom minhoto, ficavas guloso e prazenteiro com o fumegar do caldo de galinha. Subiste as escadinhas do Duque, atrás de um alfarrabista ou desceste a Avenida da Liberdade, barbudo e guerrilheiro gritando por uma pátria sem dor. Onde foste tu ó Brinjas? Andas nas tabernas das vielas sombrias (e sei lá se são tão fatalistas como as de Zolá) a ouvir fado vadio cantado por os que vêm da estiva? Será que estás no teu lado underground, quase americano e foste por a moeda na velha máquina de discos e ouvir os The Platters no only you? Só tu, como se fosses Fellini, de que tanto gostavas, encherias os noctívagos de lírios brancos no Mercado Central. Assim, Lisboa teve uma noite linda.

Andas a tomar cachaça com o Zé Cardoso Pires, ou subiste ao Chiado, para te sentares na mesa do escritor maldito Luiz Pacheco? Estarás no Bairro mais alto da cidade, a dizer ao poeta que só ele se lembraria de puxar os lençóis ao Tejo?

Serás como o pastor, nessa ermida imaginária, que só tu sabes contar, tocando a mágica flauta em que a música são estrelas? Estarás,cronista único do povo limianês, a narrar como o arraia miúda faz história? Tu não querias nem precisas, mas eles não se esquecem de ti.

PS-Foram demasiado grandes os momentos de partilha. Seriam coisas nonsense. Mas nós, como ninguém convertemo-os em saberes à nossa medida... Foi louca a vida de Lisboa. As nossas coisas também morrerão com uns e com os outros. Sobrou-me este dia na minha vida.

Publicado no Cardeal Saraiva 27/05/2011