terça-feira, 27 de dezembro de 2011

Armadas: a forma superior de fazer as coisas


Texto José António Cunha

À memória do Zé


A 20 de Agosto de 2011, ainda a manhã não tinha chegado à sua residência naquele bairro limiano, pousado sobre veigas mescladas de verdes e flores silvestres roxo-amarelas, quando o anjo negro de que fala o poeta António Feijó arrastou consigo José Manuel Pinto Armada*. O Zé da Laida, para os rapazes da sua infância, que com o atributo nominal de sua mãe, assim o distinguiam de outros homónimos da vila. O Zé Armada para aqueles que o conheceram mais tarde e com ele privaram. Ou, para os amigos mais íntimos, o nosso Almirante, fruto dos relatos entusiasmantes das vivências na arte de marear numa corveta da marinha portuguesa e do seu espírito de marinheiro.

Conhecido como artesão, certamente não viveu preocupado com a explicação clara, daquilo que era a sua a profissão. A necessidade de definir ou conceitualizar é um trabalho de académicos e outros estudiosos da matéria. Para ele, importante foi, seguramente, seguir os passos iniciados com seu pai, mestre Manuel Armada (1913/1997). A transmissão dos saberes de uma “arte” de pai para filhos era dar garantia de seguimento a uma actividade em que o progenitor tinha alcançado um estatuto no topo na divisão do trabalho estabelecido, ainda à luz da lógica hierárquica estabelecida pelas Corporações de Ofícios no contexto da Revolução Industrial no século XVIII. Para ser mestre, antes teria que passar por aprendiz e oficial, obedecendo a critérios de experiência, saber e trabalho.

Nesta época, com o surgimento da folha-de-flandres, aparecem, obviamente, aqueles que a trabalham. Como sempre, são as necessidades do tempo e da comunidade a ditar a produção de objectos do quotidiano, que vão desde a iluminação (candeias, candeeiros, lanternas) a diversos recipientes para alimentos e líquidos (funis, cântaros, marmitas, bilhas...). Daí a designação da profissão de funileiro ou latoeiro (em Portugal a terminologia também predomina, conforme a região). O carácter utilitário da latoaria ou funilaria foi decaindo, ao longo das últimas décadas, fruto da evolução tecnológica da sociedade e das consequentes alternativas emergentes. A essa quebra assistiu Manuel Armada quando, nos idos anos sessenta, começou a ver a quebra na procura de artefactos na oficina, que tinha aberto aos vinte e seis anos, por outorga de seu avô e tio ao lhe ensinarem aptidões de mestre e ainda reforçado por conselho sábio da avó, que viu nele dom para a profissão não descoberto no filho. Mas naquela década é retomada a projecção do interesse pelas coisas da arte popular. Agora não sobre a direcção de etnógrafos, mas antes retomando a linha de Ramalho Ortigão, Fialho de Almeida e outros intelectuais, entre os quais se distinguiu Joaquim Vasconcelos, tido, no dizer de José Augusto França, como o verdadeiro fundador da História da Arte em Portugal e um divulgador incansável da causa da afirmação da arte popular, como um domínio autónomo no fantástico mundo das coisas feitas pelo povo. No seguimento desta linha, é nesta altura que o poeta, pintor e professor António Quadros leva a artesã ceramista Rosa Ramalho a dar uma aula (hoje, a designação ficaria, provavelmente, por sessão ou workshop...) na Escola Superior de Belas Artes do Porto. A partir daqui, a procura pelo figurado de Barcelos e, por consequência, outras variantes do artesanato e arte popular aparecem a despoletar. E começa a desaparecer o carácter utilitário de determinados objectos, para assumirem um aspecto mais decorativo na harmonização de espaços. A sua procura partia de determinados segmentos da população com maior formação intelectual e melhor poder de compra.

Esta vaga de interesse chegou até Ponte de Lima, à pequena oficina no Largo de S.João. Disse-nos um dia José Armada que, segundo seu pai, tudo teria começado com a entrada na oficina de um vice-cônsul dos Estados Unidos da América. Ao ver a luminária saída da imaginação e do hábil manusear de Manuel Armada, ficou fascinado e, rapidamente, tornou-se num incansável divulgador da obra junto daqueles que com ele privavam. Com naturalidade, as solicitações para a concepção de peças foram crescendo e diversificando-se. José Manuel Armada, depois de concluída a escolaridade e uma fugaz experiência no comércio, começa a trabalhar com seu pai, actividade entretanto interrompida para cumprimento do serviço militar e retomada após o seu regresso. Mas a marcha na oficina era outra: já se trabalhava na recuperação de peças antigas para um exportador de antiguidades. Por sugestão do etnógrafo vianense Amadeu Costa, começam a replicar candeeiros. Soberbas molduras de espelhos e imponentes obras de luminária com predominância do rendilhado floral estão espalhadas por enormes salões solarengos de Portugal e de outras vetustas casas de Espanha, França, Reino Unido e América. As suas peças estiveram durante tempos à venda em Londres, numa das casas mais emblemáticas de decoração. Sempre privilegiaram a peça única em detrimento da reprodução. A partilha de saberes e experiência e a troca de opiniões entre pai e filho foram sempre uma mais-valia na criação e desenvolvimento de projectos artísticos. A obra foi alvo de trabalhos académicos em instituições do ensino superior em Portugal e Inglaterra. José Armada chegou a participar em sessões sobre a arte popular no âmbito de eventos organizados pelo Instituto Politécnico de Viana do Castelo. Um dia, seu pai, num timbre de voz calma e baixa que lhe era característica, confidenciou-me: “o Zé deu mais arte à coisa”. Sabia entender como poucos o que lhe pediam para executar. A perfeição e a paciência eram seus timbres. Foi capaz de saber interpretar a utilização de outros materiais como o cobre e o alumínio na composição de elementos de luminária, sem correr o mínimo risco de desvirtuar a essência da obra.

Sabia, como todos nós, que iria um dia partir. Mas ele previa-o para mais cedo do que o seu círculo de familiares e amigos. O que se confirmou. Por isso, não descurou a continuidade da sua obra, entregue agora ao mano Luís Armada e ao sobrinho João Armada Rodrigues, que estão a dar continuidade ao trabalho da família, actualmente com projectos de trabalho em Lisboa e diversas parcerias com prestigiados gabinetes de arquitectura. A tradição continua a impor-se na execução das obras. As peças continuam a ser desenhadas e trabalhadas manualmente numa partilha entre os dois artesãos. Ainda não estão receptivos à introdução das novas tecnologias no processo de design. Por vezes, a pedido de clientes, são feitas obras que fogem um pouco à composição habitual, como foi o caso de uma encomenda recente, para um projecto agro-turístico no Alentejo do grupo Amorim, em que belíssimas peças de luminária foram feitas com motivos alusivos à caça. Mesmo em tempos de menos disponibilidade por parte de potenciais compradores dos seus trabalhos, a procura vai-se mantendo, não tanto como o minimamente desejável, mas esperemos que suficiente para a continuidade do projecto.

Sem qualquer tipo de menos consideração para os restantes, é provável que a obra de Armada seja, conjuntamente com o projecto infelizmente desaparecido de Lançós (arte cerâmica), do que mais auto-estima pode causar a todos os limianos, no campo de afirmação como desígnio do artesanato tradicional numa comunidade. E, por isso, requer a atenção de todos.

Quem poderá descurar que algum objecto susceptível de se evidenciar a quem nos visita, ou a quem vamos visitar, é parte emblemática do registo da vida local, daquilo que se faz e que nos torna distintos de outras comunidades?

*José Manuel Pinto Armada (12/07/1952 / 20/08/2011)


Publicado na Revista Limiana Ano V nº 25 Dezembro de 2011

terça-feira, 29 de novembro de 2011

Águas claras

Que me desculpem aqueles que não gostam. Mas aqui fica um exemplo de que ainda há gente na política com grande dignidade. Diferente de estilo algo aristocrático de Álvaro Cunhal. Aqui fica um relato autêntico de um homem do povo, que partilha a sua história de vida com uma grandeza notável.

sexta-feira, 14 de outubro de 2011

Eu não roubei


Hoje na sala de atendimento de consultas externas do Hospital de Viana do Castelo. Largas dezenas de pessoas aguardavam, chamadas e confirmações de marcação de consulta.Muito barulho. Conversas entre pares, muitas provavelmente desnecessárias.Instalação acústica a não funcionar plenamente. Durante o aguardar da chamada para consulta houve várias advertências, por parte das funcionárias do serviço, que diariamente suportam o som das britadeiras falantes, povoadoras deste estático batelão imaginário, onde viajo. «Ou falam mais baixo ou o serviço vai ser suspenso.» - Nova advertência.Os médicos das especialidades vão convocando os doentes para os seus gabinetes. Já o ponteiro do relógio estava nas onze e da coluna de som sai:
«Endocrinologia. As consultas não estão atrasadas.Ainda há quem diga que os funcionários públicos roubam. Eu não roubei nada. Mas sei quem roubou. Eu vou pagar por eles. Como diria um poeta chamado António Aleixo:
Sei que pareço um ladrão...
Mas há muitos que eu conheço
Que, sem parecer o que são,
São aquilo que eu pareço.»
Provavelmente, não te conheço. Isso para o assunto pouco vale. Mas gosto do teu exercício de cidadania.

sábado, 28 de maio de 2011

Não sei por onde andas

Texto José António Cunha


Licas: (assim começaria o João Feijó). Brinjas(digo eu):

Não sei o que tenho nestes dias. O meu corpo dá sinais. Dentro de mim há muita inquietação. Parece que há qualquer coisa para acontecer. Tenho um prenúncio de dor que não quero acreditar. Uma coisa que me custa a perceber. Talvez seja até uma certeza de mágoa, que para não querer aceitar, invento uma forma imperfeita e hesitante de o dizer, a quem comigo nesta manhã, reparte um sol de Maio e uma triste notícia. Ninguém gosta de dias assim. Como diz o povo, a estocada da bruta nunca escolhe dias nem horas. Como tanto gostas de dizer nesse teu ímpar sangue limiano: fiquei assarapantado! Não sei se há maneira alguma de como ficar. Eu não conheço o sítio para onde foste, só sei que me dizem que saíste. Terás ido à Portugália, tomar cerveja, como de chuva interior precisasses? Desceste a Almirante Reis e passaste a noite no Bolero? Paraste na Ginginha da Barros Queiroz,dizendo a todos que Pessoa andou por aqui? Foste ao Passo, no Rossio, ouvir restos de África, falar de Ponte de Lima e da maçonaria? Vi que pegaste nos loucos de Lisboa e sentaste-os à mesa contigo, no requinte de um lugar da Rua do Coliseu. Com os do Parque Mayer, esperaste pelo amanhecer de Lisboa, junto à gare da praça do Rei-Soldado reconfortado que nem um tal Duque de Wellington. E como bom minhoto, ficavas guloso e prazenteiro com o fumegar do caldo de galinha. Subiste as escadinhas do Duque, atrás de um alfarrabista ou desceste a Avenida da Liberdade, barbudo e guerrilheiro gritando por uma pátria sem dor. Onde foste tu ó Brinjas? Andas nas tabernas das vielas sombrias (e sei lá se são tão fatalistas como as de Zolá) a ouvir fado vadio cantado por os que vêm da estiva? Será que estás no teu lado underground, quase americano e foste por a moeda na velha máquina de discos e ouvir os The Platters no only you? Só tu, como se fosses Fellini, de que tanto gostavas, encherias os noctívagos de lírios brancos no Mercado Central. Assim, Lisboa teve uma noite linda.

Andas a tomar cachaça com o Zé Cardoso Pires, ou subiste ao Chiado, para te sentares na mesa do escritor maldito Luiz Pacheco? Estarás no Bairro mais alto da cidade, a dizer ao poeta que só ele se lembraria de puxar os lençóis ao Tejo?

Serás como o pastor, nessa ermida imaginária, que só tu sabes contar, tocando a mágica flauta em que a música são estrelas? Estarás,cronista único do povo limianês, a narrar como o arraia miúda faz história? Tu não querias nem precisas, mas eles não se esquecem de ti.

PS-Foram demasiado grandes os momentos de partilha. Seriam coisas nonsense. Mas nós, como ninguém convertemo-os em saberes à nossa medida... Foi louca a vida de Lisboa. As nossas coisas também morrerão com uns e com os outros. Sobrou-me este dia na minha vida.

Publicado no Cardeal Saraiva 27/05/2011